Curiosamente, o criador da mais icônica fabricante de carros esportivos do planeta dirige (com maestria) mais um Peugeot 403 do que suas próprias macchinas nesta cinebiografia. Mas há um motivo.
Antes de explicar, porém, vamos de sinopse: durante o verão de 1957, a falência paira sobre a empresa que Enzo Ferrari e sua esposa Laura construíram dez anos antes. Ele decide apostar tudo na icônica Mille Miglia, uma corrida automobilística de longa distância pela Itália.
A obra é baseada no livro "Ferrari: O homem por trás das máquinas", de 1991, e foi produzida por longos 20 anos pelo diretor norte-americano Michael Mann (ganhador de quatro Oscars e conhecido por "O Último dos Moicanos", "O Informante" e "O Aviador).
Adam Driver (que também viveu um italiano em "Casa Gucci") e Penélope Cruz ("Mães Paralelas", "Vanilla Sky") interpretam Enzo e Laura Ferrari, quando o casal se vê em crise conjugal e financeira, mas precisa decidir se vende a companhia para Ford ou Fiat.
O filme também conta com a participação do ator brasileiro Gabriel Leone (que está gravando a minissérie "Senna" para a Netflix), vivendo outro piloto, o espanhol Alfonso de Portago.
Segundo Mann, sua intenção com "Ferrari" foi mostrar como Enzo tinha mais sentimentos por carros do que por familiares, pilotos ou mesmo fãs de corrida. Sendo assim, os automóveis acabam explicitando a personalidade das pessoas na trama.
Mas há falta de "matéria-prima": boa parte dos veículos da época simplesmente não existe mais, caso do Fórmula 1 Ferrari 801. Mesmo os supercarros sobreviventes são raridades na mão de magnatas ou em acervos de museus.
Assim, Neil Layton, engenheiro-técnico responsável por automóveis em grandes produções de Hollywood (como os carros de James Bond na franquia "007"), revelou que quase nenhum modelo visto em cena é original.
Em cena, todos os modelos da Ferrari são réplicas construídas sobre chassis da inglesa Caterham, com estrutura tubular e carroceria de fibra-de-vidro. Ou de aço, nas cenas de acidente, para maior realismo. É também o caso de Fiat-Abarth 750 Zagato, Jaguar Type D (que pelo menos usa mecânica de Jaguar XJ), Porsche Type 356 e dos supercarros da Maserati, a "vilã" da história.
A veracidade sonora das cenas de "pé embaixo", porém, ficou garantida pela captação do áudio de motores V12 de modelos mais recentes e menos raros (mas não menos caros), como a Ferrari 250 GTO 1962. Aliás, se for ao cinema, opte por salas com boa qualidade de som: valerá o ingresso!
Veja sete carros importantes no filme, um para cada um dos 77 anos de atividade da Ferrari:
O filme começa com um epílogo em preto-e-branco da época de piloto de Enzo Ferrari, para depois engatar na trama principal. Então, o que se vê é Ferrari conduzindo com maestria um... Peugeot 403 de 1956. A estratégia da biografia é mostrar que Enzo era uma pessoa prática, que gostava de comandar, mas também de ser adulado. O 403, um carro para o dia a dia, foi criado pelo estúdio do amigo Batista "Pinin" Farina, que doou o carro ao empresário. Enzo também gostava de usar outro modelo com traços da Pininfarina, a Ferrari 250 GTE, que não aparece em cena.
Também desenhados pela Pininfarina, estes dois modelos estão nas mãos das mulheres da trama por serem considerados carros de design "sensual" à época, visão que também corrobora a personalidade machista de Enzo. Laura, companheira oficial do empresário e "presidente financeira" da Ferrari S.p.A. no período, dirige o sedã Giulietta Berlina. Já Lina Lardi, amante de Enzo e mãe de Piero Ferrari, atual vice-presidente da empresa, aparece rapidamente com um esportivo Giulietta Sprint.
O malfadado F1 da temporada de 1957 é importante para explicar a fase ruim da Ferrari, após anos de domínio no mundo das corridas. E foi recriado do zero. Durante a divulgação de "Ferrari" no Festival de Veneza, em 2023, Neil Layton afirmou que "nenhuma unidade sobreviveu" até os dias de hoje: "Pedimos os diagramas originais à Ferrari e escaneamos uma miniatura em escala 1:18 para ter mais de fidelidade".
Esse também é uma réplica para um carro importantíssimo na trama, a Ferrari mais veloz até então. Com motorzão V12 de 4 litros, quase 390 cavalos e com velocidade máxima de 306 km/h (190 mph), foi criado sob supervisão do piloto e engenheiro Sergio Scaglietti, pessoa de confiança de Enzo. A resposta aos supercarros da Maserati (sobretudo o 350S) deu tão certo, que uma das quatro unidades sobreviventes desta Spider foi disputada em leilão pelos jogadores Cristiano Ronaldo e Lionel Messi, em 2016, batendo recorde de 36 milhões de euros (R$ 194 milhões na cotação atual).
Falando em Maserati, esse supercarro de 1956 deu dor de cabeça à Ferrari, nas mãos de Juan Manuel Fangio (o desafeto de Enzo Ferrari é citado, mas não aparece no filme), Stirling Moss e Jean Behra. Por conta do motor menor (V8 de 4,4 l), era mais eficiente, ao o em que tinha mais potência (407 cv), mais velocidade final (320 km/h) e melhor dirigibilidade. Pode ser considerado o "vilão" da trama.
O modelo de 1956 fez tanto sucesso na temporada, sobretudo pelo desempenho no Tour de , que acabou sendo apelidado com o nome da prova. Enzo, porém, não acreditava que seu V12 de 3 litros seria páreo para a força da Maserati em 1957, a ponto de colocar o veterano piloto Piero Taruffi (o ator Patrick Dempsey, de "Grey's Anatomy"), não o veloz Alfonso de Portago (Leone), ao volante do cupê na Mille Miglia. A história provou outra coisa.
Segundo o Internet Movie Car Database (IMCDB), que cataloga carros que são "personagens" em filmagens, há muitos carros reais em cena, mas só os comuns. Os automóveis icônicos não am de duas dezenas e, destes, só um Mercedes-Benz 300 SL Coupé (Asa-de-Gaivota) é sabidamente real. Criado por Rudolf Uhlenhaut, em 1954, o 300 SL representa outra empresa que conseguiu desbancar a Ferrari no começo dos anos 1950, dentro e fora das pistas. Mas só aparece de relance em duas cenas, talvez pelo fato de que Hollywood já esteja produzindo um filme só para abordar essa história. Ainda não há detalhes, mas Bobby Moresco, diretor de "Lamborghini", está cotado para dirigir "Ferrari vs. Mercedes".